O negacionismo do bem

Pecuária de baixa tecnologia deixa uma dura decisão a ser tomada: ou sacrifica-se o componente social, gerando uma carne mais cara, ou o componente ambiental, expandindo em área

Por Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária

Nos últimos anos, articulistas, políticos, empresários, jornalistas e quaisquer profissionais que exercem alguma liderança intelectual passaram a denunciar e criticar fortemente os posicionamentos negacionistas, que negam evidências obtidas através da ciência ou de fatos históricos incontestáveis.

O termo negacionismo não é novo. Foi registrado pela primeira vez no final dos anos 1940 em crítica aos que questionavam a ocorrência do holocausto. A negação de fatos, no entanto, é bem mais antiga que o termo. Ao longo da história já rendeu apedrejamento, fogueiras e forca para os que ousaram aprender e ensinar.

É reconfortante ver a sociedade se posicionar de maneira mais contundente em relação à produção científica ou à simples observação de fatos. Quando não se nega a realidade, os esforços se canalizam para compreendê-la, buscando maximizar os benefícios e reduzir, ou até mitigar, os malefícios da relação da sociedade com o ambiente. É a função da ciência.

No entanto, a sociedade parece tolerar o negacionismo quando se trata de algumas vertentes do conhecimento. É o exemplo da economia e da produção agropecuária. Embora não sejam os únicos, em ambos os temas é possível ver artigos, entrevistas, postagens e até livros dedicados a negar completamente o que os pesquisadores levaram anos para produzir e consolidar.

E mesmo diante dessa explícita negação, ao invés das duras críticas da liderança intelectual, o que presenciamos são aplausos e multiplicação da desinformação gerada a partir de análises incompletas ou de uma mentira, nua e crua, sem nenhuma base científica.

Pela sua suposta relação – muito mal analisada – com o desmatamento, a pecuária atrai a atenção de diversos especialistas de outras áreas que, do alto de seus currículos, julgam-se capazes de discorrer sobre temas que nunca estudaram a fundo. Emitem opiniões, conduzem seminários e assinam estudos tratando sobre manejo e arquitetura de sistemas de produção, desconsiderando toda a complexidade que existe por trás de cada decisão que deve ser adotada em uma propriedade.

Chega-se ao absurdo de sugerirem que a avaliação da qualidade de um solo dispensa a análise laboratorial das características físicas, químicas e biológicas do mesmo. Bastaria observar a quantidade de minhocas para se decidir pela melhor estratégia.

Há casos de autores de extensos estudos sobre intensificação da produção pecuária que desconhecem a função de um cocho para os animais em produção, enquanto outros elaboram projeções matemáticas de expansão da pecuária considerando que, em 2050, os bois serão abatidos com cerca de 70% do peso atual.

Recentemente, um estudo amplamente divulgado simplesmente desconsiderou a conversão entre quantidade de animais abatidos e o total de carne produzida. Animais jovens, velhos, machos, fêmeas e abatidos sob diferentes sistemas de fiscalização (federal, estadual ou municipal) gerariam, todos, a mesma quantidade de carne.

No caso dos estudos, os números absurdos não estarão lá explícitos, detalhadamente. Para identificá-los, é preciso ler o material de forma crítica, calculando os indicadores que estão por trás das informações geradas.

E, também, é preciso separar as críticas que estão sendo feitas. Na maioria dos casos, são ótimos estudos de modelagens matemáticas, sistemas de gestão de dados, interpretação por imagens de satélite que, simplesmente, pecaram em não buscar o conhecimento já existente sobre os temas relacionados.

Você pode criar o melhor sistema de modelagem do mundo, mas os diagnósticos serão muito mais dependentes da qualidade dos dados inseridos do que do modelo em si.

Quando especialistas em pecuária criticam tais estudos é fundamental levar em consideração que a crítica não é direcionada à especialidade do pesquisador, mas sim aos indicadores e premissas usados em sua elaboração.

Pela negligência dos avanços tecnológicos no campo, implementados a partir do conhecimento científico gerado nas universidades e instituições de pesquisa, muitos formadores de opinião saem publicamente em defesa de sistemas de produção pecuária de baixo aporte tecnológico.

Ironicamente, o posicionamento, que é todo elaborado para defender uma pecuária sustentável de menor impacto ambiental, preconiza técnicas e conceitos que irão gerar o resultado inverso ao que se deseja. Evidentemente que os defensores não estão conscientes dessa realidade – eles simplesmente ignoram conceitos básicos já estudados.

Se tais posicionamentos impactassem apenas a percepção leiga sobre os sistemas de produção, os efeitos já seriam péssimos. Mas o problema é muito maior.

Essa visão romantizada da pecuária sustentável vai de encontro aos modismos que, frequentemente, são difundidos no campo.

Vender o sonho de que os lucros serão maiores com menor aporte de capital tem sido a estratégia de diversos profissionais ao longo de décadas. Trata-se de uma mensagem muito atrativa para um produtor formado numa realidade diferente da que existe hoje.

Sistemas impraticáveis, que preconizam lotações excessivas de animais por hectare sem a devida correção e fertilização, acabam sendo disseminados com muita facilidade. Outra crença extremamente prejudicial diz respeito à convivência com altas infestações de plantas invasoras que, no futuro, proporcionarão sombras e, consequentemente, benefícios diretos aos animais.

Mesmo depois de comprovadas as frustrações de quem já comprou estes sonhos lá atrás, tais ideias acabam retornando com novas roupagens, novos nomes e novos gurus. O resultado será sempre o mesmo. 

Essa situação toda vai criando uma tempestade perfeita de desinformação anticiência. Acaba unindo formadores de opiniões influentes – porém leigos no assunto -, oportunistas, defensores de uma agenda contrária à produção pecuária e produtores ávidos por uma solução fácil.

Chega-se ao absurdo de um deputado federal propor, recentemente, um projeto de lei que obriga a adoção de um modelo de pastoreio cuja ineficácia é consenso entre todos os pesquisadores sérios, especializados em forragicultura. E o deputado vai além na sua proposta: ele quer que suas crenças sejam ensinadas nas universidades agrárias.

É essencial compreender o que é ensinado há décadas nas universidades. A pecuária em ambiente tropical demanda cuidados que, caso sejam negligenciados, causarão o colapso do sistema, com consequente degradação da área.  Não dá para afrontar os conceitos bioquímicos e esperar resultados permanentes no longo prazo. Se não respeitar os limites, o sistema vai ruir e, portanto, não é sustentável.

É possível criar diversas combinações técnicas para adaptar o sistema à cada região e realidade do produtor. Mas em qualquer um deles será necessário equilibrar a expectativa de retorno econômico com os indicadores técnicos que serão almejados. Estes, por sua vez, dependerão da qualidade e potencial do solo, estratégias de adaptação para a atender a demanda nutricional das plantas (correção, adubação) e manejo da área, que envolve a garantia das condições de desenvolvimento da forragem (controle de invasoras, insetos e doenças) e o planejamento da colheita (pastejo).

E, evidentemente, ainda há de se considerar todas as variáveis técnicas que envolve o componente animal, como genética, reprodução, sanidade, nutrição, bem-estar animal etc.  

Para a definição da estratégia de produção existem dois extremos. Um adapta toda a produção pecuária à realidade natural da região. Nesse caso, o sistema será conduzido com baixíssimo retorno econômico por hectare, visto que as lotações em quantidades de animais por área serão baixas pela característica do ambiente tropical. E, no outro extremo, haverá sistemas com elevado aporte de insumos, que envolvem altas lotações e altos ganhos por hectare. Este último exige uma gestão muito mais sofisticada, visto que os componentes tecnológicos envolvem maior complexidade na condução da produção, desde o uso correto dos insumos até a garantia de que tudo que foi produzido e ofertado aos animais seja colhido e consumido.

Mais uma vez, pela percepção romantizada que se formou em torno da pecuária, há a crença equivocada de que o extremo de baixa tecnologia seja mais sustentável. No entanto, tais sistemas tendem a gerar um produto de custo mais elevado para a sociedade, consequência da baixa oferta de carne por área. Para aumentar a oferta de carne, a alternativa será a expansão horizontal, aumentando a área total de produção.

Não existe mágica.

Em termos de sustentabilidade, a pecuária de baixa tecnologia deixa uma dura decisão a ser tomada. Ou sacrifica-se o componente social, produzindo uma carne mais cara, ou o componente ambiental, expandindo em área. E essa decisão, entre o pior dos males, acaba sendo necessária justamente pela baixa competitividade econômica dos sistemas de produção com pouco aporte tecnológico.

Sendo assim, a resposta sobre qual é a melhor alternativa de conduzir a pecuária sustentável já foi apresentada pela academia. Requer desempenho técnico crescente, tanto na quantidade de animais por área como no ganho individual de cada um deles.

Essa resposta é ensinada e defendida por todos os especialistas. O que muda são as estratégias técnicas desenhadas para planejar o sistema de produção.  

Se o conhecimento científico está disponível, resta compreendê-lo ao invés de continuar negando o que é gerado nas universidades e instituições de pesquisa, cujos cientistas têm sido solenemente ignorados no amplo debate sobre “como produzir”.

Caso contrário, as opiniões difundidas em larga escala continuarão dando forças para vendedores de ilusões que possuem influência cada vez maior em um mundo onde a quantidade de “curtidas” nas redes sociais parece valer mais do que o conhecimento acadêmico.

Por mais que expressões bonitas e atrativas sejam apresentadas para batizar sistemas e modelos de produção, a realidade do ambiente tropical não será alterada. Ou se leva o conhecimento acadêmico a sério ou não.

Não há meio termo.


Publicado originalmente na coluna Desafios da Pecuária, AgFeed

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