O rebanho brasileiro é menor do que se acredita

Peso médio atual dos animais do rebanho é 20% inferior ao registrado no início dos anos 1990

Por Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária.

Dependendo de como se calcula, o rebanho brasileiro de 2023 pode variar em 42,1 milhões de cabeças de acordo com os dados da mesma instituição – o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa diferença supera o rebanho do México, oitavo no ranking dos maiores rebanhos bovinos do mundo. É maior, inclusive, que as 25,6 milhões de cabeças do rebanho australiano, o segundo no ranking de exportações globais de carne bovina.

Antes de seguir o raciocínio, é essencial ressaltar que não se trata de crítica ao IBGE. Ano a ano a regularidade e o detalhamento dos relatórios vêm melhorando, possibilitando entender melhor a dinâmica da pecuária brasileira.

No dia 19 de setembro, o IBGE divulgou o relatório da Pesquisa Pecuária Municipal (PPM), informando o rebanho brasileiro em 238,6 milhões de cabeças. O número da PPM é o mais usado justamente pelo detalhamento por município publicado anualmente.

Há outra forma de se chegar ao rebanho de 2023 usando apenas informações do mesmo IBGE.

Pode-se partir do Censo de 2017 e, anualmente, somar a variação do rebanho em números de cabeças até que se chegue ao último ano. Nesse caso, calculando município a município, somando os estados para, finalmente, chegar ao total do Brasil, o rebanho de 2023 seria de 196,5 milhões de cabeças, integrando dados censitários com a Pesquisa Pecuária Municipal.  Essa é a metodologia que passamos a adotar por razões que serão explicadas ao longo deste texto.

Em 2022, por intermédio da Abiec (Associação Brasileira da Indústria Exportadora de Carne), técnicos do USDA (Departamento de Agricultura dos Estados Unidos) organizaram uma série de reuniões com a Athenagro para entender como o número estava sendo calculado.

Como os dados eram de fontes oficiais, o USDA acabou adotando a metodologia, alterando o rebanho brasileiro para as atuais 192 milhões de cabeças, o que representa a menor estimativa atual para o rebanho brasileiro. Até então, o USDA estava estimando em 270 milhões de cabeças.

A decisão por alterar o formato de cálculo do rebanho foi consequência das grandes diferenças entre os dados censitários e os divulgados pela PPM nos anos de 2006 e 2017. Analisando toda a realidade e evolução da pecuária foi possível entender a origem de números tão destoantes, ainda que publicados pelo mesmo instituto.

E a principal causa dessa diferença é a combinação entre a realidade da produção nacional e o critério adotado para calcular o nível de produtividade das fazendas, de acordo com a instrução normativa número 11 do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), de 4 de abril de 2003.

Visando atender as exigências do grau de eficiência de exploração da terra para fins de avaliação da produtividade do imóvel rural, o produtor acaba mantendo o registro de um rebanho maior do que realmente existe. Isso ocorre porque, ao invés da produtividade, o critério se baseia em ocupação por unidade animal, cálculo que envolve o peso vivo de cada bovino.

E a classificação do peso médio do animal é feita pela idade e não pelo peso em si, visto que esse dado não existe para o rebanho.

Sendo assim, pelo critério adotado, o estoque médio de uma fazenda que termina todos os machos abaixo dos 36 meses de idade será avaliado com índices de produtividade 25% menores do que fazendas que abatem todos acima dos 36 meses. A situação piora ainda mais em fazendas que abatem animais com até 24 meses. Nesse caso, a produtividade média do rebanho será considerada 50% abaixo da fazenda que abate animais com mais 36 meses de idade.

Observe que, pelo método de avaliação do grau de uso da terra com base na idade do animal, quanto mais produtiva for a fazenda, considerando o mesmo suporte de animais por área e o mesmo peso médio de abate, mais improdutiva ela tende a ser considerada.

Até 1995 essa diferença não era perceptível, pois o índice médio de produtividade da pecuária era mais baixo, fazendo com que os estoques realmente tivessem animais com mais de 36 meses na maior parte das fazendas.

Com a evolução da produtividade na pecuária, o rebanho brasileiro tem sido abatido cada vez mais jovem e com maior peso da carcaça. Os estoques de animais improdutivos com idade mais avançada também estão sendo reduzidos. Mesmo assim, esse ganho de produtividade não é identificado pelo critério obsoleto de acompanhamento do grau de ocupação.

Uma análise mais criteriosa do histórico do rebanho divulgado pelo Programa Nacional de Vigilância para a Febre Aftosa – PNEFA, do Ministério da Agricultura e Pecuária, comprova essa tendência de os produtores manterem, em seus relatórios, um estoque inexistente de animais mais velhos.

Pela evolução anual do rebanho por categorias, nota-se a queda na quantidade de machos entre 24 e 36 meses, enquanto a quantidade de fêmeas continua aumentando de acordo com o rebanho.

Essa queda no número de machos é explicada pela tendência de serem abatidos mais jovens, o que faz com que tais categorias sejam reduzidas nos relatórios de rebanho enviados às secretarias. O comportamento das fêmeas é diferente porque os animais atendem diferentes objetivos: reprodução, produção de leite (em parte dos casos) e abate. Os machos, por sua vez, são criados com o objetivo de serem abatidos, salvo a pequena parcela armazenada para reprodução. Esse comportamento, portanto, condiz com a realidade da pecuária brasileira.

Quando se analisa os machos acima de 36 meses, essa tendência de queda não ocorre, o que consiste numa incoerência em relação ao próprio histórico da categoria anterior.  E, embora estejam incluídos, não se trata apenas de reprodutores, visto que a quantidade de machos acima de 36 meses no rebanho está de três a quatro vezes maior do que seria necessário em números de touros reprodutores.

Os dados do relatório do Ministério da Agricultura têm a mesma origem que os dados que alimentam a Pesquisa Pecuária Municipal (PPM) do IBGE. Infelizmente, a divulgação do relatório referente à 2023 está atrasado desde junho.

Outro argumento que embasa essa percepção de rebanho superestimado, a partir dos dados da PPM e do MAPA, é a própria taxa de abate, ou seja, a quantidade de animais abatidos pelo total do rebanho brasileiro.

Mesmo incluindo a estimativa do mercado informal, o abate brasileiro estaria oscilando entre 17% e 18% do rebanho há anos. Essa taxa é incoerente com todos os avanços dos indicadores relacionados à pecuária. Como exemplos, é possível citar a evolução da estratégia nutricional, os ganhos em reprodução, aumento na produtividade das pastagens, adoção de integração com lavouras, confinamentos, semiconfinamentos etc.

Ainda que as estimativas apresentem números diferentes, até mesmo as conclusões de estudos publicados por organizações ambientalistas confirmam os avanços recentes da pecuária. Importante lembrar que há bases de dados, difundidas por essas organizações, que pecam pela falta de transparência metodológica e pela omissão em explicar as relevantes contradições com dados censitários e outras informações geradas por órgãos oficiais.

Quando se debruça sobre a estrutura do rebanho, considerando a evolução de acordo com a metodologia sugerida pela Athenagro, é possível concluir que o desfrute da pecuária brasileira já atinge 36% na média dos últimos anos. A taxa de abate, por sua vez, está por volta de 22%.  

O desfrute é calculado pelo total de carcaça produzida, ao ano, em relação ao peso médio do rebanho.

O peso médio atual dos animais é 20% inferior ao peso médio do rebanho do início dos anos 1990.

Em média, de mamando a caducando (usando o jargão do campo), o rebanho brasileiro pesa 10@/cabeça. Em quilogramas, esse peso representa 150 kg de carcaça.  Considerando a proporção média de carcaça em cada animal, o peso vivo médio é de 290 kg por bovino do rebanho brasileiro. Em meados da década de 1990 eram 360 kg, em média.

Ainda assim, atualmente o animal chega ao ponto de abate mais pesado e em menor tempo. A queda no peso médio é explicada pela redução das categorias de animais mais velhos do rebanho, o que justifica os motivos pelos quais os produtores acabam mantendo estoques de animais erados nos relatórios enviados às secretarias. O significativo aumento na produtividade nas fazendas pode acabar sendo punido pelo critério obsoleto de avaliação, adotado pelo INCRA.

Observe, portanto, que as inconsistências dos dados estão na origem da informação e não no manuseio das estatísticas. Não há nada que o IBGE possa fazer para corrigir um dado que já vem contaminado na origem. Nem mesmo as secretarias poderiam alterar o cenário.

Resolver essa constrangedora dúvida sobre o tamanho do rebanho brasileiro depende de mudanças que incluem os critérios de avaliação do uso da terra, assim como um massivo plano de orientação sobre a segurança e importância de transmitir corretamente as informações.  E há também o que pode ser melhorado na estrutura de entrada dos dados, assim como a padronização de terminologias, categorias, datas do relatório do rebanho e outras informações extremamente relevantes para entender e antecipar os movimentos da pecuária.

Por fim, é importante considerar a relevância de melhorar as estatísticas. Mesmo usando critérios e estudos que permitam estimar a disponibilidade de machos no “estoque de papel” (animais inexistentes), qual é a quantidade de fêmeas no rebanho de papel? Não se sabe a idade média das vacas acima de 36 meses presentes no rebanho.

Em termos decisórios, trata-se de uma informação extremamente relevante pois determina os pontos de virada no ciclo pecuário. No caso das fêmeas, a idade média das matrizes (vacas reprodutoras), a quantidade de animais e o índice de fertilidade impactam a durabilidade e intensidade dos ciclos.

Antecipar os movimentos de oferta é essencial para o planejamento dos produtores, indústrias de insumos, frigoríficos etc. No longo prazo, é a soma entre erros e acertos nos timings de investimentos que definirá quem permanece e quem sai da atividade.

O mesmo raciocínio vale para a elaboração de políticas públicas que possibilitem o fluxo harmonioso das forças de mercado. Dessa forma, evitam-se sustos nos consumidores.

A importância de trabalhar informações coerentes com a realidade possibilita que boas decisões sejam implementadas. Embora as dúvidas sobre o rebanho ainda estejam longe de serem solucionadas, os próprios dados do IBGE possibilitam entender o comportamento e adaptar o número, tal qual sugerido pela Athenagro.

No entanto, ainda existem muitas informações difundidas de maneira descuidada, como é o caso da evolução histórica na área de pastagem. Essa é a razão pela qual temos sido extremamente críticos à difusão de estudos que contrariam todos os demais conjuntos de dados relevantes sobre a pecuária.

Não há como elaborar boas decisões a partir de informações erradas. Nesse cenário, os resultados que deveriam depender da governança passam a ser regidos pela sorte. E essa falta de qualidade decisória não afeta apenas a dimensão econômica da sustentabilidade; impacta também as dimensões ambientais e sociais.

Publicado na Ag Feed em 25/09/2024.
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