Na questão ambiental, a pecuária é um ativo e não um passivo

Athenagro estima que aproximadamente 60 milhões de hectares de pastagens estejam ociosos, concentrando pastos em piores condições

Por Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária

Seria “fácil” resolver os efeitos antropogênicos nas mudanças climáticas. Bastaria limitar a disponibilidade de energia elétrica, reduzir imediatamente a exploração de petróleo, restringir o comércio internacional, limitar o turismo, o entretenimento e todo e qualquer acesso aos confortos modernos. Apesar de verdadeiro, não há pessoa no mundo que, em sã consciência, defenda algo tão fora de propósito.

No entanto, em relação à produção rural, são fartas as sugestões que, se levadas a cabo, implicariam em queda na produção, criando um efeito parecido com o disposto acima. Essas propostas, tão absurdas quanto, acabam passando porque a maioria das pessoas não percebe o impacto que poderiam causar.

Discutir o assunto sem considerar a legitimidade das demandas por produtos do agro é fingir estar em busca de soluções. É resolver os problemas semeando escassez: sacrifica-se o social em prol do ambiente. É essa a expectativa da sociedade?

Através do esforço intenso e frequente de celebridades influentes, a sociedade foi acostumada a acreditar que o aporte tecnológico através do uso de fertilizantes minerais, melhoramento genético e defensivos agrícolas seria consequência da imposição das grandes indústrias, e não uma necessidade. Por isso não compreende o real impacto do uso de técnicas modernas de produção na garantia da segurança alimentar.

Há quem defenda, com base em revisões de diversos estudos, que metade da área agrícola mundial deveria ser restaurada com vegetação natural. É possível? Pode ser que sim, visto o caso do próprio Brasil, que produz consideráveis excedentes exportáveis, dedicando apenas 30% do território do país para fins agropecuários.  Estudos da Embrapa Territorial mostram que apenas o Brasil consegue esse feito entre os países de grande relevância no cenário global de produtos agropecuários.

Para que o mundo consiga os mesmos índices de preservação do Brasil, seria necessário o reordenamento da produção mundial, deslocando grande parte da oferta do ambiente temperado para regiões tropicais, onde seria possível replicar o sucesso da agropecuária brasileira.

São pontos de discussão interessantes que mereceriam constar nos debates dos fóruns dedicados. E aí sim uma discussão desafiadora, estimulante. Mas, infelizmente, os que propõem tal desafio são os mesmos que se recusam a aceitar a eficiência ambiental do agro brasileiro. Quando o setor enumera as conquistas das últimas décadas, são os primeiros a refutá-las dizendo que são falas egocêntricas, negando-se a entender o contexto.

São também os que se posicionam contra o uso de material genético melhorado (vegetal ou animal), fertilizantes minerais e agroquímicos na produção agropecuária. Com isso, acabam defendendo um binômio impossível de ser executado: produzir mais em menor área, reduzindo o aporte de insumos.

Defendem que a produção seja conduzida em sistemas com maior diversidade de plantas na mesma área, optando exclusivamente por bioinsumos e outras práticas e técnicas consideradas mais naturais. 

A ciência especializada também vem analisando a eficiência de sistemas diversificados. As possibilidades e combinações, no entanto, são limitadas.  Nas situações em que são viáveis, pesquisadores, técnicos e produtores tem recomendado e adotado tais sistemas, a exemplo da integração entre florestas e pastagens.

Entender essas limitações técnicas não é um exercício fácil, pois envolve conhecimentos agronômicos, administrativos e mercadológicos. Diante da frustração, e por discordar dos resultados, parece mais atraente dizer que a pesquisa agronômica precisa se transformar.

Nas últimas décadas, o Brasil fez muito mais do que os outros países. O ambiente tropical é mais desafiador.

Por milhares de anos, a combinação de altas temperaturas e precipitação provocou um processo de intemperismo mais intenso, resultando em solos mais pobres em nutrientes e em outras qualidades físico-químicas. Intemperismo é o nome que se dá ao processo natural de formação dos solos a partir das rochas.

Diferente do clima temperado, todas as práticas agrícolas consolidadas a partir da Revolução Verde, iniciada na segunda metade do século XX, precisaram ser adaptadas para a realidade tropical. Por aqui, as práticas agronômicas tiveram que atender dois desafios: produzir e construir fertilidade do solo.

É por essa razão, difícil de ser compreendida entre os leigos, que a produção brasileira já está lastreada em conceitos de produção regenerativa. Técnicas, práticas e produtos preconizados pela agropecuária regenerativa são cada vez mais adotados nas fazendas, como é o caso do uso de bioinsumos e da adoção de economia circular. O processo é lento, mas vem ocorrendo.

É preciso levar em consideração que a adoção de produtos naturais é uma evolução da agropecuária moderna conduzida nas fazendas brasileiras, não uma alternativa. A adoção deve ser feita dentro das possibilidades a partir de análises tecnicamente embasadas. O tema foi tratado no artigo “Pecuária regenerativa e a confusão entre propostas e realidade”, publicado nesta coluna, em 28 de agosto.

Além da adaptação dos produtos, a produção brasileira vem adotando, há décadas, práticas que contribuem com a saúde do sistema. Como exemplo, é possível citar o plantio direto, a rotação de culturas, a adubação verde, integração entre pecuária e lavoura ou pecuária e florestas e o uso da mesma área para mais de uma safra de produção. São conquistas inquestionáveis que possibilitaram o salto em produtividade observado nas últimas três décadas.

No início dos anos 1990, somando todas as produções vegetais e animais, cada hectare envolvido na agropecuária rendia 1,4 tonelada por ano. Hoje, esse mesmo hectare rende 5,1 toneladas por ano.


Se não houvesse melhoria do solo ao longo dos anos, a produtividade não estaria aumentando. É falacioso, portanto, dizer que a agropecuária brasileira empobrece o solo. Na prática, constata-se exatamente o contrário – o que já foi confirmado por inúmeros trabalhos científicos: a qualidade dos solos conduzidos com técnicas adequadas vem melhorando. E se melhora é porque há acúmulo de carbono no perfil do solo.

A produção brasileira, ainda no embalo na Revolução Verde, se tornou regenerativa por necessidade. Ou produz dessa forma ou colherá prejuízos econômicos ao longo dos anos, tornando-se inviável. Evidentemente que há uma parcela considerável, especialmente na pecuária, que ainda não adotou os conceitos, o que proporciona a quantidade expressiva de áreas nos diversos níveis de degradação.

Analisando o perfil da pecuária com base em dados censitários e público pesquisado através do Rally da Pecuária, a Athenagro estima que cerca de 60 milhões de hectares de pastagens estejam ociosos, concentrando os pastos em piores condições.

Sendo assim, a produção comercial da pecuária, que chega às prateleiras e aos navios, ocorre em praticamente 100 milhões de hectares. As demais áreas estão espalhadas pelo país, ocupadas pela pequena produção de subsistência. São proprietários que não participam ativamente do mercado.

Produzem para si e, eventualmente, promovem vendas entre vizinhos ou mesmo para abatedouros de menor porte, cuja produção pode ou não passar por alguma fiscalização.

Mesmo irrelevantes para o movimento do mercado, representam um alto risco em questões sensíveis à pauta ambiental. Seus bezerros, por exemplo, podem acabar entrando no fluxo comercial das fazendas, misturando-se a outros lotes e, eventualmente, contaminando o compliance das garantias relacionadas ao controle dos fornecedores indiretos. Mas esse é outro assunto, já tratado no artigo “Ameaças reais à implementação da rastreabilidade bovina”, também publicado nesta coluna.

É possível dizer que a pecuária, com a tecnologia de hoje, já seria capaz de liberar mais de 60 milhões de hectares para outros usos. Isso só não ocorre por questões relacionadas à estrutura fundiária e à desafiadora sensibilização dos pequenos produtores do país.

A análise do potencial é ainda mais animadora. Pelo desempenho dos produtores que estão entre os 5% de maior produtividade dentre o público pesquisado pelo Rally da Pecuária, é possível extrapolar que a pecuária brasileira poderia ocupar apenas 14 milhões de hectares para garantir a atual produção de carne bovina. A produtividade média desse grupo é de 51,6 @/ha/ano, ou 775 kg de carcaça/ha/ano.  Essa produtividade é 11,7 vezes acima da média nacional.

Calculando de outra forma, se toda a área de pecuária brasileira produzisse nos mesmos patamares dos 5% mais produtivos do universo do Rally da Pecuária, os 162 milhões de hectares de pastagens no Brasil resultariam em cerca de 125 milhões de toneladas de carcaça, um montante 60% superior ao total de carne bovina no mundo estimada para 2024. São cálculos teóricos, evidentemente, mas comprovam o potencial presente nas propriedades rurais.

As possibilidades em torno dos sistemas de produção pecuário do Brasil são imensas dentro de todas as dimensões da sustentabilidade. Ao considerar a possibilidade de exportar tecnologia para a produção de outros países de clima similar, o potencial favorável do conhecimento gerado pela ciência brasileira é definitivo diante dos desafios que surgem no horizonte. Trata-se de um enorme ativo ambiental, esperando para ser usado em prol da sociedade.

Esse potencial, no entanto, só poderá ser aproveitado quando os diversos formadores de opinião envolvidos no debate pararem de olhar a produção pecuária a partir das tradicionais visões preconceituosas. É preciso despir-se da soberba para entender as respostas já fornecidas pela ciência.

Publicado na Ag Feed em 22/10/2024.
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