Matéria divulgada no programa Fantástico, edição de 24 de fevereiro, reforçou as inovações da produção de carne de laboratório. O avanço tecnológico é impressionante, especialmente no caso da multiplicação de células a partir de parte de um animal, que continuará vivo. As possibilidades de uso dessas tecnologias são vastas e quebram fronteiras em relação às perspectivas de longuíssimo prazo para a humanidade.
Matéria divulgada no programa Fantástico, edição de 24 de fevereiro, reforçou as inovações da produção de carne de laboratório. O avanço tecnológico é impressionante, especialmente no caso da multiplicação de células a partir de parte de um animal, que continuará vivo. As possibilidades de uso dessas tecnologias são vastas e quebram fronteiras em relação às perspectivas de longuíssimo prazo para a humanidade.
Ainda assim, o apelo da inovação peca pela abordagem. No embalo do sensacionalismo e superficialidade, que marcam o debate sobre os impactos ambientais da pecuária, a imprensa não especializada e a opinião travestida de ciência embarcam no plano de marketing de empresas como a Impossible Foods.
A empresa, altamente inovadora, tira proveito para comunicar gratuitamente o seu produto. Não há empresário no mundo da inovação tecnológica que queira reduzir os preços de venda de um produto dos US$22,0/kg para US$1,00/kg. Ainda que surfem a onda de salvação do planeta, são conscientes que seus produtos atingirão o público de alta renda, nicho de mercado que farão de tudo para garantir. Estão certos.
Errados estão os cientistas que endossam a comunicação alarmista sem consultar os seus pares especializados na produção animal. Com a sua credibilidade, induzem a imprensa ao erro, transformando merchandising em notícia.
É mentira a afirmação de que não haveria como manter a população mundial com consumo de carne bovina nos padrões brasileiros. Para defender essa ideia partem do pressuposto que um animal produz certa quantidade de carne ocupando determinada área e consumo fixos de alimentos.
Ignoram a existência de diferentes sistemas de produção e níveis de tecnologia que aumentam a eficiência na produção da carne. Nestes termos, evidentemente, é impossível aumentar o consumo de carne bovina de forma sustentável. No entanto, apesar do raciocínio correto, as premissas estão completamente equivocadas.
Com tecnologias já operadas nos campos brasileiros aplicadas apenas nas áreas de pastagens tropicais do mundo todo, onde não há desertos, seria possível alimentar toda a humanidade consumindo 5,3 vezes mais carne bovina do que consome um brasileiro médio.
Para explicar melhor o raciocínio, lançamos mão de dados e informações conhecidas e obtidas por diversas fontes. O consumo estimado de carne bovina no mundo está por volta de 9,12 kg por habitante/ano, enquanto no Brasil tal consumo gira em torno de 42 kg/habitante/ano. Sempre considerando peso em carcaça, ou seja, quase 30% do total é osso que evidentemente não será consumido.
Para evitar confusões com outras fontes de informações, explicamos que o consumo no Brasil se divide em três grupos.
O primeiro é o formal – ou fiscalizado – que, em 2018, é estimado em 26,8 kg por habitante. O consumo de carne informal – soma do abate clandestino (minoria) com o abate sonegado (maioria) – foi por volta de 11,4 kg. E o abate para consumo nas próprias fazendas, quando dividido por toda a população brasileira, atingiria 3,8 kg por habitante. Os números ainda são preliminares, e serão revisados quando os dados do último trimestre de 2018 forem finalmente divulgados.
Figura 1. Perfil do consumo de carne no Brasil
Apesar do Brasil ser a referência, pela importância da pecuária e pela posição central no debate ambiental, o maior consumo per capita no mundo ainda é na Argentina, com cerca de 10 kg a mais do que se consome no Brasil.
Figura 2. Consumo per capita nos países com maior disponibilidade de carne do mundo
Em 2018, a produção de carne no mundo foi de 71,4 milhões de toneladas em uma área de pastagens total de 3,6 bilhões de hectares. A produtividade mundial média de 1,3 @ por hectare ao ano é menor do que os brasileiros conseguiam em 1990. Atualmente, a produtividade do Brasil é de 4,5@/ha/ano, considerada baixa pelos padrões dos próprios brasileiros.
É importante reforçar que não se deve considerar a realidade brasileira como factível para todos os países. Grande parte da pecuária mundial é feita em áreas desérticas ou de baixíssimo potencial agrícola, como é o caso dos próprios norte-americanos, que mantém a cria de bezerros em áreas impróprias para agricultura e aplicam altas tecnologias a partir da recria.
No entanto, a experiência brasileira pode ser implementada em todos os países tropicais com produção em áreas não desérticas. Essas áreas de pastagens tropicais, segundo base de dados da FAO, somam cerca de 700 milhões de hectares, a grande maioria na África Subsaariana e na América Latina. Para o Brasil, os dados da FAO já foram corrigidos com base em diversos estudos conduzidos no próprio país.
Para analisar a viabilidade de manter o consumo global de carne nos patamares do Brasil, partimos de duas possibilidades. A primeira é o potencial de que todo o consumo seja garantido apenas pela produção brasileira.
Os números, claro, são hipotéticos, pois seria preciso formar um rebanho que possibilitasse tamanha produtividade na área total de pastagens atualmente disponível. O objetivo, no entanto, não é analisar o mercado, mas sim comprovar a viabilidade de produzir sem a necessidade de desmatar mais do que o permitido por lei, como acreditam os autores de estudos feitos a partir de premissas equivocadas. Em ambos os casos – alta produtividade ou desmatamento – o rebanho teria que ser formado a partir do que existe hoje.
A segunda possibilidade considera o aumento da produtividade em todas as áreas de pastagens tropicais em regiões não desérticas, que poderiam garantir níveis de produtividade equivalente ao do Brasil. Da mesma forma, trata-se de um número hipotético com o objetivo de testar o potencial.
As produtividades consideradas foram aquelas observadas a campo, durante as últimas edições do Rally da Pecuária, expedição que percorre anualmente 11 estados de relevância pecuária no Brasil.
Foram filtradas as produtividades médias e os cortes dos 25% até o 1% mais produtivo, conforme detalhado na figura 3. Optou-se por considerar apenas o ciclo completo, tento em vista a necessidade de formar o bezerro para garantir a produção de carne ao final. A recria/engorda atinge níveis de produtividade bem mais elevados.
Figura 3. Níveis de produtividade na pecuária de corte de ciclo completo de acordo com os seguintes critérios
É importante lembrar que mesmo a produtividade média dos 1% mais produtivos ainda não atinge o potencial biológico da pecuária brasileira. Também não envolve o uso de irrigação de pastagens, situação rara entre o público do Rally da Pecuária. E mesmo quando encontrado, as fazendas que irrigam pastagens são geralmente focadas em recria e engorda, excluídas no cálculo da figura 3.
Voltando ao raciocínio, o potencial produtivo do ambiente tropical é tão expressivo que apenas a produção brasileira seria capaz de garantir consumo per capita global no nível dos argentinos, caso todos os atuais 162 milhões de hectares de pastagens atingissem a produtividade próxima dos 1% mais produtivos do Rally da Pecuária. Lembrando, vale sempre reforçar, que ainda se está longe do potencial identificado pela pesquisa de ponta.
Figura 4. Evolução no consumo per capita mundial alterando apenas o nível de produtividade no Brasil
Extrapolando a produtividade a campo no Brasil para as pastagens tropicais ao longo do mundo, passíveis de serem conduzidas com sistemas de produção semelhantes, o nível de produtividade obtido entre os 20% e 10% mais produtivos do Rally da Pecuária seria suficiente para garantir o consumo per capita global no nível dos argentinos.
Figura 5. Evolução no consumo per capita mundial alterando apenas o nível de produtividade em todas as pastagens tropicais não desérticas
Projetando a produtividade do 1% mais produtivo em ciclo completo, a disponibilidade per capita mundial poderia ser 4 vezes maior do que a dos argentinos ou quase 25 vezes maior do que o consumo per capita global atual.
Os sistemas de produção seriam garantidos com técnicas conhecidas, uso de insumos, genética, integração e aproveitamento de resíduos, transformando alimentos pobres e não digeríveis pelo ser humano em proteína nobre de altíssima qualidade. A produção leiteira evoluiria junto com a produção de carne, melhorando significativamente a qualidade de vida da população mundial e injetando diversos outros produtos oriundos da cadeia produtiva da pecuária de corte, até mesmo o biodiesel.
Não há impedimento ambiental para garantir a elevação do consumo de carne bovina a toda população do mundo. E, caso um dia sejamos 9,5 bilhões ao invés dos 7,0 bilhões, a tecnologia também terá avançado como avançou nos últimos 30 anos.
Desconhecimento sobre a realidade pecuária, sensacionalismo e alinhamento com uma agenda anti pecuária tem empobrecido o debate em torno das possibilidades da produção de carne.
Garantir consumo de carne bovina em padrões brasileiros para o mundo todo não só é possível ambientalmente, como seria interessante do ponto de vista econômico e social. Além do acesso a alimentos, a produção em países tropicais aumentaria significativamente a qualidade de vida e as oportunidades para as populações mais pobres do planeta.
Com as informações e conhecimentos disponíveis, é inconcebível que ainda se ignore todo o potencial de produção no debate ambiental. A inovação tecnológica e as novas possibilidades são sempre bem-vindas, mas não podem chegar cavalgando em mentiras.
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