Monitorar o fluxo dos animais nas fazendas não é, e nem será, sinônimo de controle do desmatamento
Por Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária
Dizer que a pecuária é a grande causadora do desmatamento tornou-se aquele tipo de afirmação consensual, sobre a qual ninguém pode contestar. E não se chegou a esse consenso pelo método científico ou por comprovação matemática entre causas e efeitos. Foi por meio de exaustiva repetição com base em análises incompletas e pouco aprofundadas. Estudos mais complexos e conclusivos foram praticamente engavetados por mostrar, contundentemente, que os principais drivers do desmatamento não se relacionam com as demandas por carne bovina e, consequentemente, com a pecuária de corte. Mas detalhes técnicos pouco importam aos especialistas mais preocupados com holofotes ou com o acesso a recursos.
Apesar das crenças, os fatos não se intimidam. É a sociedade que precisa se adaptar à realidade, e não o contrário. Caso o tema não seja tratado com o devido rigor, todas as iniciativas de combate ao desmatamento ilegal resultarão em fracasso.
É preciso compreender a complexidade e as diversas variáveis que se relacionam com o desmatamento que ocorre em áreas que deveriam ser preservadas. Em recente artigo sob o título “Legal, ilegal, irregular ou legítimo? Tons de Cinzas no desmatamento”, o pesquisador da Embrapa Territorial, Evaristo de Miranda, apontou alguns exemplos que demostram como a complexidade do tema é muito maior do que apresentado nas discussões.
No entanto, no debate público, as análises se concentram nos dados resumidos do PRODES e nos alertas do Deter, ambos do INPE. Existem ainda outras fontes de dados que ocupam considerável espaço na mídia, embora pequem pela falta de transparência de seus critérios, além de publicarem constantes mudanças nos números históricos.
A compreensão fica ainda mais comprometida quando se considera a inserção do assunto no polarizado debate político atual. Em ambos os extremos parece haver uma torcida em relação aos números do desmatamento, a depender do governo do momento.
O fato de que a maior parte das áreas de desmatamento se transforma em pastagens é incontestável, criando uma correlação real entre ambas. No entanto, essa realidade não explica a causa do desmatamento, mas sim a consequência. Parece confuso, mas na prática é o desmatamento que traz, por consequência, a instalação de uma pastagem e não o contrário.
Especialmente no caso das ilegalidades, é a única alternativa viável ao desmatador. E, nessas áreas, acabam sendo colocados animais em lotações (cabeça ou unidade animal por hectare) bem abaixo do mínimo aceitável. Dessa forma, o operador ilegal reduz o seu próprio risco caso seja pego em alguma fiscalização. Além da alta liquidez do capital investido em rebanho, animais se locomovem podendo ser rapidamente retirados da área no caso de alguma fiscalização. Basta alguém, de moto ou a cavalo, abrir colchetes e porteiras para impedir que o gado seja encontrado.
O objetivo dos grandes desmatamentos ilegais não é expandir a produção pecuária, mas sim ocupar uma determinada área, na expectativa de obter retorno com sua venda ou uso futuro. A operação é imobiliária. No caso do desmatamento em pequenas áreas, as explicações seguem outra dinâmica que não será discutida aqui.
Se a pecuária fosse a demandante do desmatamento, haveria forte correlação entre rebanho e área desmatada, o que não ocorre na região da Amazônia, nem na legal e nem no bioma. Até mesmo quando se compara a área de pastagens total com o desmatamento, não é possível notar essa correlação. Isso ocorre pelo fato de que a quantidade de áreas transferidas para outras atividades, ou perdidas por regeneração involuntária (pós degradação), é maior do que o avanço sobre novas áreas.
Quando o argumento das correlações é apresentado, de imediato os interlocutores do ambientalismo dizem que é preciso regionalizar. Ainda assim, o resultado será o mesmo.
Em 20 anos, o estado do Pará respondeu por 38% do desmatamento na Amazônia Legal. O Mato Grosso, em segundo lugar, respondeu por 26,7% do desmatamento.
Analisando apenas os dados do Pará, nota-se o mesmo comportamento da inexistente correlação entre rebanho, produção de carne e até mesmo áreas de pastagens com os desmatamentos observados. Evidentemente que, em regiões específicas, em partes de municípios onde se concentram os maiores desmatamentos, a correlação será positiva, mas sempre pontual.
É imprescindível que os dados obtidos por imagens de satélite sejam usados para identificar e qualificar o processo de desmatamento, ao invés de usá-los, insistentemente, para acusar a pecuária por algo que ela não é a causadora. Seria muito mais produtivo municiar os órgãos competentes para coibir essas ocorrências.
Deveria também ser obrigação do estado criar e garantir ferramentas eficientes ao controle do desmatamento ilegal – aquele que ocorre em áreas públicas não destinadas ou atribuídas, ou em áreas privadas protegidas pelas regras do Código Florestal. Para obter sucesso nesse combate, é preciso que a dinâmica de desmatamento tenha uma análise melhor do ponto de vista espacial e fundiário.
O objetivo aqui não é embasar uma mera defesa da atividade pecuária, mas sim direcionar as ações ao diagnóstico correto. As atenções precisam ser focadas nas soluções e não no debate eterno e improdutivo em torno do problema.
A prova de que diagnósticos equivocados tendem a amparar decisões ineficazes reside em outro consenso que surgiu a partir da crença sobre as causas do desmatamento: a de que o controle do fluxo de animais, do nascimento ao abate, seria suficiente para coibir os avanços ilegais sobre a vegetação. Trata-se do controle dos fornecedores indiretos pela rastreabilidade.
Vultosos recursos têm sido direcionados a estudos e elaboração de ferramentas que possibilitem tal controle. Ao final de novembro, um decreto do governo do Pará instituiu o Programa de Integridade e Desenvolvimento da Cadeia Produtiva da Pecuária de Bovídeos Paraenses e o Sistema de Rastreabilidade Bovídea Individual do Pará, estabelecendo um prazo para que todos os animais do Estado sejam rastreados.
Importante ressaltar que a rastreabilidade é desejável e deve ser implementada por diversas razões, que vão desde a garantia de que não haja ilegalidade na cadeia de produção até o alto nível de controle de qualidade do produto final. A própria gestão das propriedades rurais, assim como dos frigoríficos, terá uma condição melhor com um eficiente sistema de rastreabilidade do fluxo de animais.
Portanto, não se discute aqui a necessidade de rastrear, e sim a eficiência desse processo no controle do desmatamento. Controlar o fluxo dos animais nas fazendas não é, e nem será, sinônimo de controle do desmatamento.
E ainda que essa realmente fosse a principal ação para solucionar o problema, os intensos debates e estudos publicados estão omitindo uma variável importantíssima dentro do contexto. Toda a pressão está incidindo sobre os frigoríficos exportadores, mais organizados e fiscalizados pelo sistema Federal (SIF). No Pará, 81% do abate ocorreu sob fiscalização federal em 2023, sendo que os sistemas estadual e municipal responderam, respectivamente, por 13% e 6%, proporção que se repete praticamente em todo o país, salvo alguns estados que possuem participações maiores das fiscalizações municipais e estaduais.
E ainda não é tudo. Parte do abate no Brasil ocorre informalmente, por sonegação e para consumo nas propriedades rurais. Estimativas da Athenagro apontam que, em 2023, a soma do abate fiscalizado pelos sistemas federal, estadual e municipal tenha representado 85% do total abatido.
Diante desse cenário, cabe a pergunta. Como a rastreabilidade seria eficiente em controlar o desmatamento ilegal se toda a pressão seria exercida em cerca de 75% a 80% do abate formal, que pode ainda representar apenas entre 65% e 70% do abate total?
Ora, se o raciocínio por trás do controle dos fornecedores indiretos é evitar que a carne de animais de origem duvidosa chegue ao consumidor final, o controle não pode ser feito apenas nos estabelecimentos que respondem por 65% a 80% – na melhor das hipóteses – do total de animais abatidos. Sobrará uma “avenida” para escoar a produção de origem ilegal.
Se essa diferença no perfil do abate não for equilibrada, o único efeito das ações será o aumento da competitividade dos estabelecimentos com pouca fiscalização e quase nenhuma pressão por conformidades socioambientais. Não deveria ser preciso lembrar – mas aparentemente é – que modelos de negócios mais competitivos tendem a crescer mais.
Discussões mais aprofundadas sobre o tema são essenciais para que as ações não levem a resultados inversos ao que se pretende.
As empresas frigoríficas mais organizadas, assim como seus fornecedores, serão capazes de atender as demandas pelo controle dos fornecedores indiretos. Mas há uma parcela considerável de produtores, principalmente pequenos, que serão excluídos do processo. E haverá também as empresas frigoríficas, menos preparadas, que serão empurradas para os nichos de menor controle e exigência. Se não aceitarem operar dessa forma, cederão involuntariamente espaço para aquelas que já operam com pouco rigor ou até mesmo na ilegalidade.
Por fim, teremos um grupo de indústrias e produtores, responsáveis pela maior parcela da produção de carne, garantindo um produto totalmente em conformidade com as demandas atuais. Terão condições de assegurar que a produção ocorra dentro dos limites previstos pelo código florestal, ou até mais do que a exigência legal, zerando o desmatamento em sua cadeia de fornecedores.
Ainda assim, o desmatamento ilegal não será controlado justamente porque nem todas as empresas e produtores estarão sujeitos às mesmas regras e fiscalizações.
Acredite ou não que a pecuária seja a causadora do desmatamento, o fato é que ainda haverá vias de escoamento para os animais de origem ilegal. Ou alguém imagina que desmatadores ilegais recuperariam a consciência durante o processo, não aceitando vender seus produtos para sonegadores?
É impossível pensar na efetividade de ações de rastreabilidade sem que haja padronização da fiscalização e exigências do abate, assim como o devido combate ao não fiscalizado.
Caso contrário, na prática, o resultado desta estratégia, muito mal planejada, seria a aceleração do processo de concentração e exclusão de produtores do sistema produtivo. E tudo isso sem efeito algum no controle do desmatamento. Tem algum sentido?
Publicado originalmente na coluna Desafios da Pecuária, AgFeed